domingo, 9 de novembro de 2014

Indicando: Os Intocáveis



Os Intocáveis é um filme francês de comédia dramática, escrito e realizado por Olivier Nakache e Éric Toledano, com François Cluzet e Omar Sy nos principais papéis. O filme aborda a relação de um multimilionário tetraplégico e do seu peculiar auxiliar de enfermagem, baseado no livro autobiográfico de Philippe Pozzo di BorgoLe Second souffle. O filme assim como o livro são baseados em fatos reais. Foi o filme mais visto na França em 2011 e é o mais rentável filme francês da história. O dinheiro arrecadado com a venda dos direitos de autor da adaptação do livro ao cinema, cerca de US$ 650 mil, foi doado a uma associação de ajuda a deficientes físicos.

Sinopse

Philippe (François Cluzet), um refinado multimilionário tetraplégico francês, precisa de um auxiliar de enfermagem para o auxiliar nas suas atividades rotineiras. O contratado é Driss (Omar Sy), um senegalês radicado nos subúrbios de Paris, que acaba de cumprir uma pena de seis meses de prisão e que não tem qualquer formação para o cargo, porém Driss de uma forma um tanto "errada" faz Phillippe ter prazer pela vida novamente.

Comentário de um telespectador
Este filme francês vencedor de vários prêmios e baseado em fatos reais, é de fato um belíssimo Drama, que edifica e ainda é capaz de provocar deliciosas gargalhadas, mesmo que a maior parte do tempo seja pautado na construção de uma amizade improvável... que se transforma no ápice desta maravilhosa e delicada história. A Química dos protagonistas consiste no epicentro do imponente sucesso que fez este filme. Com uma trilha repleta de belíssimos arpejos pianísticos e diálogos inspirados que produzem espontaneamente plasticidade a beleza do confronto entre duas distintas culturas que se descobrem através da maestria de uma inspiradora relação. Um filme para se assistir com a alma e com o coração aberto. Um grande espetáculo de arte para qualquer público.

 
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             Dentro de uma perspectiva lógica, a relação entre os dois personagens principais do filme tinha tudo para não dar certo, sendo um o oposto do outro, no entanto, não foi o que ocorreu. Ao contrário da afirmação anteriormente feita, a exceção à regra acaba tornando a lógica uma cumplicidade entre Phillip e Driss, dentro de uma relação, a princípio, estritamente profissional, que foi constituindo uma amizade, cheia de cuidado, harmonia e companheirismo. 
             Phillip é um homem branco, maduro, de elevado nível econômico e é tetraplégico, enquanto Driss é um rapaz negro, pouca condição financeira, sem a mínima experiência para exercer o papel de cuidador, ao qual foi contratado por acaso, ou seja, são vivências completamente diferentes. Onde nunca se esperou que fossem estabelecidos vínculos, contra os paradigmas, um se fortalecia no outro diante da realidade, transformando essa história de limitações, e o que poderia ser um drama foi superação. Superação esta que não consiste em algo físico, mas que está para além do nosso campo de visão. É uma superação da forma que transpõe medos e perdas. 
             Em um determinado ponto do filme, percebe-se que Driss não trata Phillip visando sua deficiência, e percebemos isso no desenrolar da história. Nota-se que a tetraplegia passa a ser um fator secundário, e o que passa a ser relevante, também, é o choque dos dois mundos, onde a cultura é totalmente diferenciada e os valores sociais são preponderantemente descompensados. Há cenas que evidenciam exatamente esse papel, como a que o Driss esquece que o Phillip tem deficiência física e não fecha o sinto de segurança da cadeira de rodas, por exemplo. Ele não evidencia os limites do seu “patrão”, mostrando a ele, inclusive, novas maneiras de perceber a vida e as pessoas. Por esse motivo, foi contratado. Driss não trazia o sentimento de pena em sua relação de trabalho e, posteriormente, acabou tornando-se íntimo de Phillip. 
             Uma das coisas que se sobressai, também, durante o filme, é o fato de que, independente de status ou condição física, o ser humano nunca pode se achar ou se tornar uno e viver numa ilha onde sua sobrevivência dependesse tão e tão somente dele. Precisamos cuidar e sermos cuidados, afinal, sem esse cuidado, deixamos de ser seres humanos. Segundo Leonardo Boff, há algo que só os seres humanos são capazes de fazer, que é a capacidade de se emocionar, de se envolver, de afetar e ser afetado, e isso nos envolve às pessoas, por isso é tão importante que não invertamos os valores, e não esqueçamos do que somos capazes de fazer e proporcionar ao outro. 
             Vivemos em um mundo onde tudo tem seu preço, a humanização das situações é desprezada, visamos o que o outro é e esquecemos quem ele é, coisificamo-los. O fato de viver nesse contexto gera no ser humano uma frieza e incapacidade de enxergar o problema do outro como algo que seja importante e passível de nosso auxílio. Às vezes, o problema está dentro de nossa própria casa e isso nos torna incapaz de visualizar e perceber determinadas situações da maneira que são realmente. Fazendo um paralelo com o filme, não é o poder do dinheiro que contextualiza a história, e sim a relação totalmente humanizada que existe entre os dois. O homem ativo no mundo é o único capaz de cuidar no sentido integral, natural e consciente, une desta forma, os componentes racionais e sensíveis ao mesmo tempo. 
             Phillip e Driss mostraram um ao outro que, mesmo com suas diferenças tão notáveis, era possível haver uma troca, que mesmo dentro da realidade de Phillip, possuidor de uma situação economicamente privilegiada, não o impediu de aprender, enxergar e sentir a leveza e a simplicidade que não fazia parte de sua vida até então. Assim como Driss pôde aprender sobre arte, por exemplo, nos mostrou que isso não está restrito apenas a quem tem dinheiro ou status, mas que é uma fonte de conhecimento, prazer e sentido que se dá, seja em um quadro cheio de informações ou em uma mancha no meio dele. O sentido que se dá as coisas e as experiências é o que se sobressai e importa, de fato, numa relação com o outro e com a vida. Nessa perspectiva, Phillip foi estimulado por Driss a ter ânimo para reaprender a viver, ambos agregando experiências peculiares, mas igualmente sábias.              Borges e Waldow trazem a ideia de que existem diversas maneiras de cuidar, e estas maneiras possuem intensidades bem diferentes, porque vão de acordo com as situações e a forma com a qual se está envolvido. Se formos pegar o significado global de cuidado, este está relacionado a atenção, aplicação a alguma coisa, ao trabalho feito com muito cuidado. Percebe-se que Driss não seguia à risca o que extraímos do conceito, o que não quer dizer que ele não seguisse algum modelo de cuidado, o cuidado dele. Driss fazia com que Phillip se sentisse autônomo, fazendo muitas vezes com que o pensamento de limitação, que antes era tido como única verdade, fosse esquecido da forma penosa que se apresentava. É bastante visível isso, quando Driss chama uma massagista para trabalhar com as orelhas de Phillip, proporcionando prazer da maneira que ele podia sentir. 
             Summa apud Roselló, traz, segundo a visão de Watson, que o cuidar está mais voltado ao que se entende pela Enfermagem. Quando cuidamos de alguém, a integridade física é o que acreditamos ser ideal, mas no caso de Phillip, quando o corpo não responde mais aos comandos ou sente dores, o cuidado com o corpo é importante, mas, nem de longe, é tanto quanto a subjetividade do sujeito que precisa desse cuidado. Para a Enfermagem, a motivação fundamental de sua ação é cuidar de sujeitos em condição de vulnerabilidade e, por conseguinte, sofrimento. Envolve a saúde, enfermidade e conduta humana. Estes são três pontos que estão interligados. 
             A partir disso, percebemos no filme que, mesmo que o Driss não tivesse conhecimento sobre esse conceito, ou mesmo consciência do que estava fazendo, foi o que ele realizou. Cuidou do corpo, promovendo o conforto físico, do íntimo, quanto ao empoderamento do ser e ressignificação do corpo socialmente, e do cotidiano do Phillip, fazendo de sua vida, incontestavelmente mais feliz, proporcionando-lhe uma qualidade que não tinha antes dele aparecer. Ainda na mesma ideia do autor, é o cuidado que é valorizado pelo paciente e não necessariamente a cura. Isso se encaixa perfeitamente do filme, tendo em vista que não havia possibilidade de cura, apenas poderia ser feito algo que melhorasse a vida do Phillip, em função do aproveitamento do que a vida proporcionava para ele, mesmo com suas limitações. A forma de absorver o mundo e de significa-lo, foi a grande questão que a obra nos instigou a observar. “Isso significa que a tarefa de cuidar não é patrimônio exclusivo de uma determinada profissão, mas um dever de humanidade, isto é, de qualquer ser humano, pois demanda de sua própria natureza.” (SUMMA apud ROSELLÓ, 2009). 
             O autor traz, segundo a perspectiva do bioeticista Pellegrino, que há dois sentidos ainda para o cuidar, o primeiro trata pelo sentido da compaixão, na qual o cuidar é ter empatia pelo outro, pondo-se a sentir e passar as mesmas dores que o outro sente, enquanto que a segunda refere-se exatamente a forma que o Driss apresentou, que é ajudar uma outra pessoa a ser autônoma, ou seja, ajudar o outro a fazer o que ele não consegue ou pode fazer sozinho. Assim, o cuidador serve de ponte, oferecendo recursos para a transposição das barreiras impostas a quem possui necessidades especiais, em qualquer que seja o caso. 
             Essa discussão vai bem mais além, Roselló compartilha do mesmo pensamento que Verspieren, quando afirma que o cuidador precisa compreender que a discrição é fundamental, pois assim, proporciona uma ajuda que seja praticamente imperceptível aos olhos de quem a usufrui, perceba que, se alguém recebe uma ajuda nessas condições, vai ser bem mais improvável que ela se perceba como inferior, algo que ela não é. O que encontramos diariamente, é que a posição de quem precisa de ajuda é considerada humilhante para muitos. Estar na condição de quem precisa e não de quem oferta, traz em si, uma carga de sentidos que na nossa sociedade é vista como ruim. Então, a discrição é fundamental no papel de um cuidador, tomando uma postura que nem invada a privacidade do outro nem seja impessoal (SUMMA apud ROSELLÓ, 2009). 
             Trazendo à profissão de psicólogos, fugindo um pouquinho do filme, isso nos remete a função que precisamos desempenhar no processo de autonomia do ser humano, somos quem ajuda-o a superar aquilo que ele não consegue sozinho. Vamos no íntimo dele para extrair elementos que nos permitam desenvolver o nosso papel, levando em conta todos os elementos que foram apontados até então, como discrição, cuidado, integridade física e emocional, relação sujeito-ambiente, subjetividade, além de diversos outros fatores que envolvem o processo de cuidar desse outro, não tanto pelo sentido da compaixão, mas no segundo sentido que o Pellegrino aponta, que é de ser ponte para a autonomia, dando espaço para que as dificuldades do outro apareçam, mas sempre como algo que possa ser superado por ele e somente por ele, ainda que seja com a nossa ajuda. 
             Muitas vezes, as pessoas tentam se colocar no lugar de quem está sofrendo e tentar saber o que esse outro sente, mas o ponto de partida não deve ser esse, pois cada um tem sua história, sua dor, e quando se diz “só sabe quem passa”, é porque a maneira de subjetivar as experiências é pessoal, ainda que hajam no mesmo lugar duas pessoas fisicamente idênticas, que passem pelas mesmas situações e que possuam familiares e amigos, a forma de absorver tudo isso é única. Olhando para o outro e vendo suas fragilidades, potencializa-se aquilo que esteja sentindo na hora, e não ameniza. E é exatamente isso que vemos no filme, a tetraplegia foi minimizada, potencializando o sentimento de ultrapassar limites. Não ameniza o problema, mas se aprende a conviver com ele, e fazer do mesmo, uma fonte de superação. 
             Algumas frases de Antoine de Saint-Exupéry, em seu livro O Pequeno Príncipe nos faz refletir determinados aspectos: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.”, ou seja, nem toda a estrutura que Phillip tinha, nem todo o seu dinheiro, poderiam gerar a emoção que Driss o proporcionou em toda a época que conviveu com ele, deixando marcas definitivas e únicas. Desencadeando um sentimento que é essencial para tornar as coisas especiais e significativas. 
             Outra frase também de Antoine de Saint-Exupéry que é cabível para explicar o que houve na relação entre Driss e Phillip, é a seguinte: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”, por mais que o tempo passe a responsabilidade das transformações ocorridas com ambos será sempre de tudo que foi plantado com o tempo, em que um foi fundamental na vida do outro gerando uma relação de independência, onde eles aprenderam a agir e lidar com tudo que os rodeavam. Mas ainda assim, a responsabilidade por essas mudanças, um vai atribuir ao outro. 
             O que podemos destacar aqui também, é que não era somente o Phillip que estava em posição vulnerável e que que precisava de ajuda por ser tetraplégico, mas o Driss também. Roselló aponta em sua obra que “todo ser humano é vulnerável, (...) mas essa vulnerabilidade pode ser potencial ou real.”. Embora Driss não tivesse alguma necessidade especial física, ele se encontra em uma realidade social muito ruim, adotado pelos tios, pobre, cheio de irmãos, um em especial tinha se envolvido com o que aparentou ser uma gangue, estava desempregado, a mãe o tinha expulsado de casa, além de outros fatores que levaram ele a uma nova situação, que foi de cuidar de uma outra pessoa e realizar algumas ações que ele considerava ser contra seus princípios, como ter que dar um banho completo no Phillip, por exemplo. 
             Veja que, mesmo com tantas dificuldades, Driss não evidenciou o que fazia-o sofrer naquele momento. Em cena alguma foi mostrado no filme ele maldizendo a si ou a situação em que se encontrava. Phillip ofereceu-lhe emprego, mas, mesmo que em troca de casa e salário, Driss não o tratou como se estivesse em uma situação melhor ou pior, ou somente profissional, mas sim de igualdade, e o ajudou da melhor maneira que pôde. Dessa forma, acabou um cuidando do outro. E as dificuldades de ambos foram dia a dia sendo superadas. 
             A relação entre Phillip e Driss externou para nós a experiência concreta de perceber o outro de forma empática, sendo os dois os protagonistas necessários para o processo de reinserção de uma pessoa com necessidades especiais às suas atividades normais e sociais. Um acolhendo o outro à sua maneira, suspendendo as dificuldades encontradas nas situações cotidianas, refazendo-as como próprias de cada um, e adaptadas ao contexto que se desenrolara. 
             As histórias dos dois personagens, totalmente opostas, se entrelaçaram em um convívio prioritariamente trabalhista, e que a partir da convivência dedicada entre ambos, resultou-se na mais eficaz e comprometida reciprocidade, sem seleção de comportamentos, de rigorosidade, de planos estratégicos, e compreensão teórica, mas a prova de que os desafios enfrentados pelos dois, cada um com o seu grau de dificuldade, foram irrelevantes para a concretização do processo inclusivo, e que a cumplicidade entre Phillip e Driss foi crucial para que a ajuda mutualística transformasse a vida dos dois, chegando à prática não só de inclusão, mas também de ressignificação dos sujeitos e dos “estilos” de vida cômodos que até então os dois estavam inseridos, Philip em sua pomposa e financeiramente favorecida vida, e Driss no seu estado despojado e socialmente marginalizado de se viver, mesclaram suas experiências e aceitaram as suas condições, não sendo, as limitações impostas pelas relações sociais dos dois, nem a tetraplegia, uma barreira que hierarquizasse o convívio promissor e verdadeiro compromisso recíproco de um para com o outro. 
             Phillip e Driss puderam lançar a nós uma perspectiva diferente de se trabalhar com pessoas portadoras de necessidades especiais, enfrentando as incompatibilidades e as problemáticas cotidianas como motivos para a prática constante da resiliência, do cuidado e da atenção, muito mais ao sujeito do que às dificuldades que ele enfrenta. 
             É preciso encarar o outro, independente de sua necessidade, e como causa prioritária, extrair aproveitamento das relações, resultando em um processo de aprendizagem e de contínuo aprimoramento das práticas de cuidado. Não encarar o outro como diferente, na consideração literal da palavra, levando-o ao encontro de novas rotinas e convivências, oportunizando-o a percepção de si mesmo e de sua utilidade, além de construir junto com o indivíduo uma nova proposta de vida, baseada na efetivação plena da existência em quanto se pode objetiva-la, e tê-la como bem maior para o sujeito e para os que com ele convivem, oferece-lhes a opção de juntos reformarem suas vidas, buscando sempre o seu melhoramento e a utilidade com a qual todos podem dedicar-se. 

REFERÊNCIAS 

Significado de Cumplicidade. Disponível em: < http://www.significados.com.br/cumplicidade/>. Acesso em: 20 de agosto de 2014. 
WALDOW, R.V; BORGES, F.R. Cuidar e humanizar: relações e significados. Acta paul. enferm. vol.24 no.3 São Paulo, 2011. 
BOFF, L. Saber Cuidar: Ética do Humano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1989. 
ROSELÓ, F. T. Antropologia do cuidar. 1. ed. Org. Vera Regina Waldow. Trad. Guilherme Laurito Summa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

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